Do combate para a moda: A História da Camuflagem
Deus é camuflagem, tanto como conceito quanto como padrão, é onipotente e onipresente. Mas como poderia um simples padrão têxtil ser comparado com Deus? O próprio padrão têxtil de camuflagem é apenas um aspecto da teoria da camuflagem, embora o mais visível. O padrão, com sua intenção original de ocultar a forma humana durante a guerra, relaciona-se diretamente com o conceito da teoria da camuflagem praticada de outras maneiras, como ocultar partes indesejáveis do corpo ou distorcer a realidade visual. O termo “camuflagem” incorpora significados filosóficos mais profundos que falam de uma negação intencional da verdade. De fato, a camuflagem da moda brota desse reino teórico do engano intencional – truques destinados à sobrevivência por meio da mudança da realidade.
Identificar o momento exato em que a camuflagem se tornou parte da moda é uma tarefa difícil. Quanto mais fundo você cava, mais longe você vai, mais complicado se torna de explicar onde o streetwear e o estilo militar se encontram. Então, o que há na camuflagem que a tornou tão popular no mundo da moda? Em rápida análise, é uma combinação de vários fatores; simbolismo cultural, história e estética. Antes de entender como a camuflagem se tornou legal em um sentido estético, é importante ter um pouco de contexto histórico e cultural.
Quando se trata de equipamento militar o foco muda rapidamente para os séculos XX e XXI. Mesmo que vários exércitos tenham começado a usar uniformes no século XIX como resultado da natureza em mudança da guerra, apenas na Primeira Guerra Mundial tornou-se necessário usar camuflagem em grande escala.
Com as novas tecnologias, desde o reconhecimento aéreo ao uso de novos equipamentos bélicos (armas de longo alcance, metralhadoras e tanques), tonou-se mais do que necessário esconder instalações militares e soldados. A França teve que aprender da maneira mais difícil durante as fases iniciais da Primeira Guerra Mundial e rapidamente começaram a empregar artistas, designers e estudiosos para desenvolver técnicas para “esconder” tudo, de veículos a edifícios. A arte serviu como o principal nó de transferência da camuflagem entre os domínios militar e civil.
Os principais exércitos sempre levaram em consideração a ocultação, a ponto de até resultar na ascensão ou queda de civilizações, como por exemplo, a história do Cavalo de Tróia, há também, relatos de que os primeiro navios usados em batalhas foram pintados de azul para se misturar ao oceano.
Por quase 20 anos, a Guerra do Vietnã dominou a política, a mídia e a cultura convencional americana ao longo de sua vida, inspirando inúmeras iniciativas de protesto e antiguerra e se tornando uma das principais frentes de batalha do movimento de contracultura. Enquanto os soldados no Vietnã estavam lutando uma guerra militar, a América estava lutando sua própria guerra civil cultural entre valores tradicionais e conservadores e o idealismo progressivo dos movimentos de amor livre e direitos civis. E ao contrário da Guerra da Coreia que a precedeu, ou das duas Guerras do Golfo que se seguiram, o coquetel sombrio da Guerra do Vietnã de florestas tropicais, napalms, cigarros, ópio, jaquetas de turnê e camuflagens não apenas solidificou o militarismo como um elemento central da identidade americana mas também o fez ser percebido pelo mundo.
"Tiger Camo" usado na Guerra do Vietnã
Como resultado, a cultura militar tornou-se tecida nas raízes da sociedade americana em uma cultura de uma maneira que nunca tinha sido antes. Seu efeito se alastrou por todos os cantos da cultura; bandas como Creedence Clearwater Revival cantou sobre isso em suas músicas; livros como The Things They Carried, de Tim O'Brien, e Chickenhawk, de Robert Mason, trouxeram contos angustiantes de guerra de volta ao solo americano; e filmes como Full Metal Jacket, Apocalypse Now, lançados nos anos imediatamente após a guerra, vale a pena comentar sobre Travis Bickle, o anti-herói vestido de M65 do icônico filme Taxi Driver de Martin Scorcese, um veterano desiludido da Guerra do Vietnã lutando para se reajustar à vida americana.
O movimento da arte pop foi rápido em subverter os padrões e ressignificar o conceito de camuflagem, com muitas obras notáveis, incluindo a série de camuflagem de Alain Jacquet e, mais tarde, a série de pinturas de camuflagem de Andy Warhol em meados dos anos 80, mudou a maneira como muitos designers de moda consideravam os padrões. Dando sequência a grandes referencias da época, rappers do Public Enemy despertavam entusiasmo no público, e em 1988, usava um padrão de camuflagem em preto e branco ao promover seu álbum It Takes a Nation of Millions to Hold us Back, assim como Bone Thugs, Wu Tang Clan e Tupac também fizeram algumas aparições com estampa. Então quando chegamos à ascensão do rap e do hip-hop na virada dos anos 90, o estilo do exército estava em toda parte. Jovens rappers negros que cresceram em cidades como Nova York e Chicago procurando se vestir com um orçamento limitado teriam se familiarizado com as compras em lojas excedentes do exército, e a estética militar se mistura à cultura de gangues negras americanas nesta época.
Arte de Alain Jacquet
Arte de Andy Warhol
Woodland Camo
U.S Woodland Camo Classic
A ascensão do hip-hop foi combinada com a ascensão do streetwear, skatistas, rappers e grafiteiros precisavam de roupas resistentes que agregassem no seu estilo e emponderamento, cada um por suas próprias razões. Como resultado, a camuflagem encontrou seu lugar em praticamente todos os cantos da subcultura dos anos 90.
Artistas intermediaram a transmissão fluida da camuflagem entre a moda e os militares durante o início do século XX. Na Ásia, graças à Segunda Guerra Mundial, Guerra da Coreia e a Guerra do Vietnã, a cultura militar americana já estava presente há mais de 50 anos. Então, quando designers no Japão como Jun Takahashi da Undercover, Shinsuke Takizawa da Neighborhood e o fundador da A Bathing Ape, NIGO, começaram suas marcas, cada uma explorando a cultura americana do século XX à sua maneira, a camuflagem tece seu protagonismo mais do que firmado na moda.
French Lizard Camo
Camo ABC BAPE
As ricas influências de rap da Bape levaram à criação da icônica camuflagem ABC da marca, trazendo o padrão de pintura da camuflagem vietnamita de caçador de patos em um padrão de arte pop que seria usado por praticamente todos os rappers icônicos dos últimos 30 anos, incluindo Kanye West, Pharrell Williams, Notorious BIG e entre outros. Os padrões de camuflagem permeiam todas as facetas da moda comercial, especialmente desde que designers tão famosos como Jean Paul Gaultier e John Galliano projetaram coleções com a impressão. Provavelmente é por causa disso, perdeu seu simbolismo masculino, ganhando apreço em massa e aparecendo em todos os lugares.
O padrão de camuflagem predominante usado pela moda é o padrão US Woodland, provavelmente devido ao domínio americano na política, economia e cultura popular no século XX. A ampla adoção cultural da camuflagem significa que ela é democrática, com massas de pessoas usando o padrão, mas interpretando-o individualmente. Essa flexibilidade indica que a camuflagem carece de um estado cultural fixo, uma maleabilidade de mudança de significado que é, em sua essência, a definição perfeita da palavra “camuflagem”.
À primeira vista, a camuflagem militar parece sugerir o desaparecimento do indivíduo, sua própria natureza como uniforme enfatiza a conformidade, enquanto os efeitos ópticos do padrão forçam a desintegração da forma humana. No entanto, quando usada pela moda, a camuflagem anuncia a presença, servindo para distinguir o usuário dos demais. Como o mundo fragmentado, em termos socioculturais o padrão de camuflagem incorpora conotações conflitantes – violento mas pacífico, urbano mas natural, conformista mas subversivo. Democrática, a camuflagem pertence a homens e mulheres, ricos e pobres, pacifistas e guerreiros. Em última análise, é o usuário, não o padrão em si, que determina seu significado.
Texto/Pesquisa: Vitor Queiroz