Entre o Rap e a Performance: Como Doechii está moldando o futuro da música

28 de mar. de 2025

-

Quando olhamos para a cena musical do rap, é quase impossível ignorar artistas que não só dominam as letras, como também a presença e autenticidade no cenário urbano. Constituídos por uma grande personalidade e atitude, esses aspectos saltam os olhos de quem os vê em meios ao palcos — não é tanto que Doechii é a prova disso.

Misturando rap, R&B alternativo e elementos do hyperpop, a nova personalidade feminina do rap desafia as regras do jogo e se recusa a ser encaixada em um único rótulo. Desde suas primeiras faixas virais até sua ascensão meteórica com a TDE, DoeChii prova que o futuro do rap feminino é diverso, ousado e sem medo de experimentar. Mais do que uma artista, ela é um símbolo de representatividade e reinvenção.

A rapper, nascida Jaylah Ji’mya Hickmon, começou sua jornada no rap postando faixas no SoundCloud, onde chamou atenção com um som singular e autêntico. O que a levou a sua primeira grande virada com “Yucky Blucky Fruitcake”, uma faixa autobiográfica que virou trend no TikTok e fez dela um nome a ser acompanhado. Com um flow versátil e uma presença de palco magnética, não demorou muito para a gravadora Top Dawg Entertainment (TDE) — lar de nomes como Kendrick Lamar e SZA – estender as mãos pra rapper e investir em sua carreira. A assinatura com a TDE foi um marco. Diferente de muitas rappers que seguem fórmulas previsíveis, Doechii trouxe algo novo: uma fusão de agressividade e teatralidade, com referências que vão do punk ao voguing.

INFÂNCIA E O SURGIMENTO DE DOECHII

Desde sua infância, a rapper já dava indícios do seu futuro sucesso e que estava destinada aos palcos. Com uma formação voltada para áreas artísticas do ballet ao coral, ela sempre demonstrou alta aptidão para as diferentes formas de arte. Mas o seu enfoque se deu por sua conexão com a música — onde encontrou seu próprio espaço. Criando a persona “Doechii” ainda na adolescência para se proteger do bullying, ela transformou essa atitude em combustível para sua carreira. “Eu estava me tornando menos eu mesma para caber na caixa em que [os valentões] queriam me encaixar, e essa não era realmente quem eu era. Eu era brilhante e sempre fui deslumbrante”, disse a rapper — mostrando que nem mesmo os momentos mais conturbados poderiam lhe afastar do seu objetivo e dela mesma.

Em 2016, começou a lançar faixas no SoundCloud, e o estouro veio com Yucky Blucky Fruitcake no TikTok, abrindo caminho para contratos de peso. Como a primeira rapper feminina assinada pela Top Dawg Entertainment, seguiu conquistando reconhecimento com prêmios e parcerias de alto nível, incluindo Beyoncé e Katy Perry. Mas foi com a mixtape Alligator Bites Never Heal que o mundo realmente parou para prestar atenção. Seu destaque foi tão assertivo, que mostrou em pouco tempo que não veio para ser apenas mais uma — mas sim para deixar sua marca.

MODA

Em relação com a moda, seu estilo é bem característico e mistura teatralidade, humor e uma pegada marcante da cena do rap. Doechii, através das roupas, traz os holofotes para toda sua identidade artística, mostrando ser uma performer completa — não apenas mais uma rapper. “Também comecei a me sentir atraída por roupas mais confortáveis. Eu nunca me vesti pelo conforto; isso não era eu. Gostava de usar coisas avant-garde, as mais desconfortáveis e teatrais possíveis. Agora, priorizo o conforto acima de tudo”, afirma a artista dizendo que apesar de brincar com diversas estéticas e estilos — prefere o conforto.

Essa construção visual se dá pelo seu som, marcado por versos cômicos e provocativos, sem medo de expor suas verdades, abordando temas como saúde mental e sexualidade. Sua essência brilhou os olhos de públicos fora de sua bolha, conquistando tanto fãs de Nicki Minaj, pelo jogo de palavras, quanto de SZA, pela vulnerabilidade e sensibilidade nas letras. Além disso, sua presença tem acompanhado a primeira fileira de vários desfiles como Schiaparelli, Tom Ford, Acne Studios e sua participação icônica na Dsquared2 — onde abriu o desfile impactando o público saindo de um tanque de guerra ao som de “Nissan Altima”.

TRAJETÓRIA/ MOMENTO DECISIVO

A artista sempre teve uma energia frenética e uma presença de palco insana, mas num momento de virada, ela tomou uma decisão que impactou diretamente sua arte e seu bem-estar: reduzir o uso de certas substâncias para focar totalmente na música. Em várias entrevistas e posts, ela já deu a entender que quer estar mais presente, mais afiada e mais conectada com seu processo de criação.

Isso mostra não só maturidade, mas também o quanto ela leva sua carreira com uma seriedade distinta. A indústria da música tem um histórico pesado de excessos, mas ver uma artista como Doechii escolher a clareza mental para elevar seu som não só soa inspirador como mostra o resultado da sua evolução. Isso só reforça o que ela representa: autenticidade, controle sobre sua narrativa e um compromisso real com sua evolução artística.

“Eu tenho fome. Eu quero ser a melhor. Se eu tiver dois dias, ou 24 horas, vou trabalhar o máximo para fazer a melhor performance porque quero ser a melhor. Ponto.”, afirmou a rapper.

Doechii rapidamente provou que não era apenas mais uma artista da nova geração. Seus feats, performances e lançamentos mostram o peso da sua presença na cena. “Persuasive”, em parceria com a SZA, é um exemplo disso: uma das músicas que consolidou seu espaço na TDE, com um groove viciante e um refrão que virou mantra. No BET Awards 2022, sua performance foi um dos momentos mais falados da premiação, misturando rap, dança e estética futurista. E ainda, seus trabalhos com Black Bitch mostraram sua versatilidade, explorando diferentes facetas da sua identidade e musicalidade.

ÁLBUM ‘ALLIGATOR BITES NEVER HEAL’

Um dos seus maiores destaques se deu pela sua mixtape de R&B e hip-hop “Alligator Bites Never Heal”, que levou 30 dias para ser escrito, gravado e produzido — com referências ao álbum “Adventures in Paradise” da Minnie. E da mesma forma que Minnie havia utilizado um animal real (no caso, um leão) na execução de seu projeto, Doechii seguiu a mesma linha e colocou um jacaré albino. Todo o álbum declama o amor dela para a Flórida — seu estado de origem; e é por isso que o animal escolhido se encaixa perfeitamente na mensagem do projeto, já que é utilizado como símbolo da Flórida. “Eu coloquei meu coração e alma nessa mixtape”, falou a artista ao receber o prêmio de “Melhor Álbum de Rap” no Grammy. “Eu abri a minha vida. Eu passei por tanta coisa. Eu me dediquei para a sobriedade e Deus me disse que isso seria recompensado”, afirmou a rapper.

Além disso, a mixtape mostra total coesão e harmonia quando ela destaca sua trajetória, mostrando que, assim como no titulo “Alligator Bites Never Heal”, — que foi moldada pelas feridas/mordidas de pessoas próximas ou que ela infligiu nos outros; destacando que ela é quem é por causa da sua narrativa. “Quando as pessoas estão ouvindo este projeto, elas estão realmente me testemunhando reconectar com minhas raízes. Aprendi a fazer rap através de batidas de boom bap, através de batidas clássicas. Meu primeiro rap que fiz foi uma faixa de diss”, afirma Doechii.

Esse momento marcou não só sua carreira como também a indústria, recebendo três indicações ao Grammy, incluindo Melhor Álbum de Rap, indicada na categoria com um formato de mixtape. Com isso, Doechii tornou-se a terceira mulher ao lado Lauryn Hill e Cardi B a receber prêmio de “Melhor Álbum de Rap” no Grammy.

MARCOS

A artista em ascensão está em um momento gradual, e dentre esse tempo, Doechii conquistou o título de Mulher do Ano da Billboard em 2025, agregando seu nome ao lado de Taylor Swift, Karol G, SZA, Ariana Grande, Selena Gomez e Lady Gaga.

Doechii também fez história ao entrar duas vezes na Billboard Hot 100 com a mesma música - “Anxiety” -, um momento tão raro e impressionante. A jornada do hit começou em 2019, quando a cantora lançou a faixa no YouTube. Anos depois, o rapper Sleepy Hallow usou seu refrão para criar sua própria versão, com Doechii creditada como feat. O estouro veio em 2023, quando ambas as versões viralizaram, impulsionadas pelo TikTok e até por Will Smith, que recriou uma cena icônica de Um Maluco no Pedaço ao som da track. Além do sucesso global, Doechii também tem uma conexão especial com o Brasil: sua versão de “Anxiety” traz um sample de “Seville”, do lendário violinista brasileiro Luiz Bonfá.

RELAÇÃO COM O BRASIL

A relação com o Brasil, no entanto, tem altos e baixos. Em 2024, a rapper decepcionou os fãs ao cancelar seu show no Afropunk Experience, em São Paulo, mas agora parece disposta a se redimir. Em fevereiro, prometeu vir ao Brasil em breve e, no programa Hot Ones Versus, revelou que um dos seus objetivos é visitar o país com frequência e até falar português fluentemente. Se cumprir a promessa, a conexão de Doechii com o Brasil pode ir muito além de um sample.

REPRESENTAÇÃO

Hoje, ela se destaca como símbolo de coragem e essência criativa, da qual não tem medo de ser quem é — se tornando uma ícone representativo que ressoa para muitas pessoas. Como uma mulher negra e queer, ela desafia os padrões normativos do rap, um gênero ainda dominado por homens e por uma visão tradicional da feminilidade. Seu visual, letras e performances refletem uma identidade autêntica e poderosa, abrindo caminho para outras artistas que não querem seguir a cartilha imposta pela indústria.

A estética e sonoridade da Doechii mostram que o hip-hop não tem limites. Ela brinca com diferentes estilos, do rap agressivo ao pop experimental, provando que a nova geração de artistas pode ser múltipla. Além disso, sua autenticidade inspira jovens criadores a se expressarem sem medo, seja na música, na moda ou na atitude. “Você tem que sonhar e encontrar tempo para sonhar ou então você para de criar coisas novas para perseguir”, disse a rapper numa entrevista com a revista Dazed.

Além disso, quando olhamos para o aspecto social e cultural, Doechii se destaca de maneira emblemática como figura poderosa para meninas negras, oferecendo um modelo tanto de autenticidade como de empoderamento e superação. “Eu sei que existe alguma garota negra assistindo isso agora, e quero dizer que você pode conseguir. Não deixe que projetem estereótipos em você. Você é exatamente quem precisa ser, e eu sou prova disso", afirmou Doechii.

Enquanto muitas rappers contemporâneas seguem uma linha mais comercial, Doechii desafia essa lógica ao trazer um som e uma imagem mais alternativos. Ela não se limita ao sexy ou ao gangsta – ela é tudo isso e muito mais. Sua energia performática lembra artistas como Missy Elliott e Nicki Minaj, mas com um toque futurista e um compromisso forte com a experimentação.

FUTURO DO RAP

Ao que parece, Doechii não é apenas uma estrela em ascensão – mas uma metamorfose que está moldando o futuro do rap. Sua presença vai além da música e desafiar normas, mas também expandindo possibilidades e abrindo portas para uma nova geração. Hoje, ela representando o que já é, confirmamos o óbvio — que Doechii é uma das vozes mais inovadoras da cena, que promete ser ainda mais impactante.