‘Made in China’: o lado oculto da indústria de luxo
Quando olhamos para o universo das grandes grifes e do prestígio que as acompanha, é quase impossível imaginar que por trás de uma bolsa de dez mil dólares exista uma realidade que escancara a dependência da indústria de luxo à produção chinesa.
Com vídeos virais, fabricantes da China estão expondo as produções ocultas desse sistema — revelando que muito do que é vendido como “Made in Italy” nasce em linhas de montagem asiáticas, com a mesma mão de obra e materiais usados para criar cópias sofisticadas. Esse movimento escancara não só a fragilidade da narrativa de exclusividade, como também reacende um debate sobre o verdadeiro valor do luxo.
Com a gradual progressão da briga comercial entre os EUA e a China, as marcas de luxo se tornam parte temática como alvos dos fabricantes chineses — que agora, enchem as redes sociais com vídeos que apresentam a produção de peças das mesmas. Em forma de retaliação às tarifas impostas por Trump, os vídeos postados revelam como muitas das grifes dependem da fabricação chinesa e da mão de obra barata para produzir os produtos, além de destacar um incentivo dos consumidores para comprarem diretamente com suas fabricas.
O cenário atual se destaca pela imposição de Trump em 145% de todos os produtos importados da China. A China, em resposta à ação repentina do governo americano aplicou tarifas de 125%. E, neste momento, o país asiático está pressionando Washington à cancelarem a tomada de decisão — alegando a prática como injusta de tarifas recíprocas.

“Instamos os EUA a darem um grande passo para corrigir seus erros, cancelar completamente a prática equivocada de ‘tarifas recíprocas’ e voltar ao caminho do respeito mútuo”, declarou o Ministério do Comércio da China em nota oficial. Esse comunicado destacou a preocupação do país quanto aos posicionamentos dos EUA, após Trump anunciar uma pausa de 90 dias nas tarifas durante seu discurso no Liberation Day, em 2 de abril. O discurso se voltou à não somente na retomada de decisão, como também à repensarem o andamento dessas transações comerciais. Ainda, na sexta-feita passada, a equipe administrativa de Trump também anunciou isenções para alguns produtos eletrônicos — inclusive os fabricados na China — e afirmou que está se preparando para introduzir uma “tarifa de semicondutores” separada, que será divulgada futuramente.
Quanto aos conteúdos expostos, o vídeo mais compartilhado foi de @bagbestie1, um cidadão chinês dono de uma fábrica (da qual não foi identificada) que afirma fornecer há 30 anos para diversas marcas europeias de luxo. No seu perfil, além de ainda ser possível ver os vídeos em questão, também há um perfil idêntico chamado @senbags2, onde outro homem fala sobre o funcionamento das fábricas chinesas, além de afirmar a produção de bolsas para grandes grifes.
Durante sua fala, ele também destaca que as peças desenvolvidas são enviadas para a Europa, onde recebem o selo “Made in Italy”, indo em contraponto à suposta verdade de que todo o luxo é europeu, sendo que na realidade é secretamente “Made in China”. Além disso, o chinês fala sobre a promoção de cópias sofisticadas das bolsas da Hermès, mostrando listas de custos e materiais usados para fabricar a famosa bolsa Birkin.
Esse não foi um caso isolado, é claro. Diversos fornecedores e fabricantes chineses que são responsáveis pela produção das grifes, recorreram as mídias para exibirem a habilidade artesanal de suas equipes e, oferecer vendas diretas ao consumidor por preços mais baratos do que do varejo. Dentre os designs disponíveis para compra, destacam-se Hermès, Louis Vuitton, Chanel, Estée Lauder e Bobbi Brown.

Uma das grandes grifes, no caso a Chanel, impulsionou, sem querer, toda a discussão após uma postagem em suas redes — um vídeo que mostrava o processo de montagem de suas bolsas, que por sua vez, não eram feitas completamente a mão, mas por máquinas. O vídeo gerou espanto por um lado dos seus consumidores e de admiradores da marca, que ressaltaram sua indignação ao verem uma bolsa avaliada em dez mil dólares — ter uma linha de produção feita com processos muito industrializados.
Essa comoção se destacou além do aspecto industrial, indo até as considerações e questionamentos do que é considerado luxo. A pergunta para a marca Chanel se destacou dessa forma: como um produto de alto luxo pode ter tantos processos industriais, sendo que nas métricas estabelecidas em justificação dos preços se destacam pela qualidade dos materiais, valor da marca, artesanato e principalmente nesta questão — a execução manual dos produtos.

Os vídeos somam milhões de visualizações, mostrando trabalhadores de fábricas detalhando os materiais como couro, além de técnicas de costuras manuais e as linhas de produção utilizadas na confecção de produtos. A realidade que eles retratam mostra a discrepância quanto a precificação dos produtos, que em suma são acima dos cinco dígitos.
“São os mesmos materiais, mesmas mãos, só não tem a marca,” disse um vendedor. As marcas de luxo podem chamar isso de pirataria. Mas os consumidores estão chamando de “capitalismo no auge", afirmou um dos fornecedores. Alguns fornecedores afirmam que o custo real de uma bolsa Birkin de US$ 34.000 é, na verdade, de cerca de US$ 1.400. Segundo eles, o valor da icônica bolsa está mais associado ao poder da marca, do que quanto ao trabalho artesanal feito. A questão agora é que, muitos desses fornecedores, estão oferecendo o mesmo produto (sem o logo) por um décimo do preço original, destacando alguns até com possibilidade de frete internacional grátis e isenção de taxas de importação.

Quando olhamos o peso do comércio global voltado a participação da China, é nítido ver sua importância como maior exportadora do mundo, abastecendo não só mercados, como eletrônicos, roupas, brinquedos, automóveis e de máquinas em todos os continentes. Mas ela não é apenas fornecedora: é também um dos maiores mercados consumidores do planeta. Com mais de 1,4 bilhão de habitantes, a China oferece um mercado consumidor gigantesco, atraindo marcas internacionais que competem ferozmente pela atenção e pelo poder de compra da população.

A influência chinesa também se estende aos investimentos e à geopolítica. O governo e empresas chinesas investem em infraestrutura, energia e tecnologia em países de todos os continentes, ampliando sua presença e influência por meio de projetos como a Iniciativa do Cinturão e Rota. Paralelamente, A China tem grande influência sobre os preços globais de commodities, já que variações em sua demanda interna podem elevar ou derrubar significativamente os valores de produtos como soja, petróleo e minério de ferro.
Diante de tudo isso, fica evidente que a economia mundial está fortemente entrelaçada à China — e qualquer movimento no mercado chinês ressoa de forma imediata e até indireta ao redor do mundo.
A partir desse contexto, o nacionalismo no país ganhou força e, como exemplo disso, um dos títulos de um dos vídeos mais assistidos da LunaSourcing, com 2,9 milhões de visualizações, é “Cite uma coisa que a China NÃO consegue fazer", destacando a persistência da voz chinesa ao ressaltar o altissimo nível de qualidade que as fábricas do país são capazes de fornecer.
O que fica nítido é a precisão técnica dos vídeos, que é acompanhada por um discurso massivo e carregado de estratégias rápidas e criativas, mostrando não só os motivos que o mundo não funciona sem a produção chinesa, como também minar ainda mais a confiança dos consumidores ocidentais.
Tudo isso acontece em um cenário marcado pela guerra comercial entre Estados Unidos e China, no qual o governo chinês chegou a ameaçar suspender as exportações de terras raras e semicondutores — elementos essenciais para a fabricação de computadores e armamentos. Enquanto a China por outro lado, tem se firmado nas relações e acordos comerciais com a Coreia do Sul e Japão, além de estartar pequenos diálogos com a Europa para demonstrar o seu papel no comércio global.
O motivo em questão é que o setor luxuoso está sendo atingido diretamente, e ao que parece, as marcas de luxo estão se mantendo reclusas quanto a essa pauta. Mas, levando em conta que a hashtag pouco comum #chinesemanufacturers já soma 74 milhões de visualizações — e #chinasourcing, impressionantes 157 milhões — um possível parecer acompanhado por um acerto de contas parece cada vez mais inevitável.
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