O colapso de Marvin Gaye e o nascimento de What’s Going On
O álbum que Marvin Gaye fez em meio a depressão, dívidas e perdas.
É tão difícil imaginar que, em um álbum tão vasto e que após 50 anos continua presente, haja uma história tão pesada por trás. A primeira audição de What’s Going On pode parecer leve, envolta em músicas com uma sonoridade única, um groove e a mais pura raíz do soul que fazem flutuar.

Mas tudo ali nasceu do caos. Marvin Gaye escreveu, produziu e lançou esse disco em um momento onde nada à sua volta fazia mais sentido.
A morte de Tammi Terrell, sua parceira de palco e uma das poucas pessoas em quem ele confiava plenamente, foi o primeiro colapso real. Ela sofreu vários desmaios durante apresentações ao lado dele, e em março de 1970, após anos de cirurgias e diagnósticos de tumor cerebral, faleceu aos 24 anos. Marvin entrou em luto profundo. Chegou a dizer que não queria mais cantar. A parceria com Tammi não era só musical, ela era seu contraponto emocional, e perdê-la deixou uma lacuna irreversível.

Ao mesmo tempo, seu casamento com Anna Gordy, 17 anos mais velha e irmã do chefão da Motown, vinha em desgaste há anos. Traições mútuas, disputas por poder e conflitos constantes levaram Marvin a viver em uma relação cada vez mais instável, marcada por afastamentos e reconciliações provisórias. E isso se refletia tanto na sua vida pessoal quanto nas negociações profissionais com a gravadora.

Sua saúde mental desabava junto com as finanças, agora que devia para a IRS - Governo Federal dos Estados Unidos - , Marvin devia quantias expressivas por não declarar corretamente seus ganhos. E para além do dinheiro, sentia que havia perdido o controle da própria imagem. E a Motown, que o via apenas como um rosto bonito para músicas de amor, negava a liberdade criativa que ele agora exigia.
A Motown, por sua vez, não via espaço para transformação. Marvin era uma peça importante na engrenagem da gravadora: voz doce, repertório romântico, boa aparência. Ele representava o ideal de cantor negro bem-sucedido dentro dos padrões do mainstream. Mas isso já não o interessava. Quando propôs músicas com crítica social, espiritualidade e perspectiva política, Berry Gordy travou. Disse que aquilo não vendia. Que protesto não era negócio.
O single “What’s Going On” foi recusado pela gravadora. Berry Gordy disse que era “a pior coisa” que já tinha ouvido. Marvin, cansado, bateu de frente: ou lançavam aquilo, ou ele parava de gravar. O single saiu em janeiro de 1971, alcançou o topo das paradas de R&B e o segundo lugar na Billboard geral. O sucesso forçou a Motown a recuar, foi quando Marvin Gaye assumiu tudo. Produziu o álbum completo, compôs e gravou como queria, e entregou à gravadora uma obra que não se encaixava em nada do que a Motown produzia até então.
O disco inteiro é contado da perspectiva de um veterano do Vietnã que volta para casa e encontra um país partido.
Essa lente permite que Marvin discuta guerra, brutalidade policial, racismo, fome, crise ambiental e alienação urbana sem sair do próprio quintal. O irmão dele, Frankie Gaye, tinha voltado da guerra pouco tempo antes, e as conversas com Marvin influenciaram diretamente a criação do álbum. “What’s Happening Brother” é um retrato direto dessa sensação de deslocamento: “Can’t find no work, can’t find no job, my friend”. A América que prometia um recomeço aos seus soldados devolvia-os à marginalização.
Em “Mercy Mercy Me (The Ecology)”, Marvin antecipou a pauta ambiental com uma clareza assustadora. Fala sobre petróleo nos oceanos, poluição nas águas, radiação no ar, tudo embalado por um groove suave, quase meditativo.
A faixa se tornou um ponto de ebulição de uma discussão que ainda seria levada a sério muito depois, décadas depois, e Marvin já levantava a bola numa época em que artistas raramente se colocavam nesse campo. Já “Inner City Blues (Make Me Wanna Holler)” fala da opressão vivida nos centros urbanos, especialmente pelos homens negros: “Crime is increasing / Trigger happy policing”, tema central de discussões após a guerra no Vietnã.
O disco tem nove faixas e nenhuma delas é descartável. Todas são ligadas entre si, seja musicalmente, seja pela narrativa. Há ali uma construção de atmosfera que Marvin pensou com cuidado, que te coloca a ponto de escutar as músicas pela sua qualidade e toda a complexidade sonora de instrumentação, mas que a partir do momento em que você entender uma estrofe, bastará para mudar totalmente sua percepção do som gostoso de ouvir que embole o disco.
Os arranjos são de David Van De Pitte, mas a mão firme é de Marvin, inclusive na forma como coordenou os músicos do estúdio, exigindo interpretações específicas e detalhes de execução. Um exemplo marcante é o baixista James Jamerson, que gravou deitado no chão por estar bêbado, mas entregou uma das performances mais respeitadas da soul music.
O mais impressionante de What’s Going On talvez não seja sua técnica ou sua coesão, mas o fato de que tudo isso surgiu no momento mais frágil de Marvin Gaye. Ele estava em depressão profunda, evitava o público, evitava os amigos, chegou até considerar largar tudo e tentar carreira no futebol americano.
Tinha dívidas acumuladas no e não conseguia dialogar com Berry Gordy. Nesse estado, criou um dos melhores discos já produzidos até hoje, capaz de mudar totalmente os rumos do Soul Music.
O lançamento do disco em maio de 1971 foi um divisor de águas. Tornou-se o álbum mais vendido da história da Motown até aquele momento, contrariando o que os chefes da gravadora previam. Teve três singles no top 10 da Billboard e ocupou por mais de um ano as paradas de R&B. Mas o impacto mais duradouro foi outro, Marvin Gaye abriu caminho para que artistas da própria gravadora buscassem autonomia criativa. Nem a Motown nem a Soul Music foram a mesma depois desse álbum.
Com o tempo, What’s Going On se transformou num símbolo. Foi eleito o maior álbum de todos os tempos pela Rolling Stone em 2020. Influenciou artistas de todas as gerações, em samples, em reinterpretações, em documentários e até em trilhas sonoras contemporâneas, como Da 5 Bloods, de Spike Lee, que utilizou a versão acapella da faixa-título para marcar uma das cenas centrais do filme.
Que nunca seja esquecido.
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