Os 65 anos de Brasília

A ideia de levar a capital do Brasil para o interior do país remonta ao período colonial. Desde a primeira Constituição Republicana de 1891, havia a previsão da mudança da capital federal para uma região mais centralizada, num gesto que visava não apenas a descentralização política, mas também uma forma simbólica e estratégica de integrar o território nacional.

Mas foi só em 1956, sob o governo de Juscelino Kubitschek, que a ideia saiu do papel, dentro do seu ambicioso Plano de Metas — o lema “cinquenta anos em cinco” prometia impulsionar o desenvolvimento do país e, entre as metas, Brasília era peça central.

Do ponto de vista da engenharia, a construção de Brasília foi um feito quase sobre-humano. A cidade foi erguida em tempo recorde: menos de quatro anos (1956–1960), no meio do Cerrado, uma região praticamente inexplorada até então, distante dos principais centros urbanos.

A Novacap (Companhia Urbanizadora da Nova Capital) foi criada especificamente para gerir esse megaempreendimento. Caminhões, tratores, perfuratrizes e toneladas de concreto e aço foram levados para um lugar sem infraestrutura. Mais de 60 mil trabalhadores — os candangos, como ficaram conhecidos — vieram de diversas partes do Brasil, sobretudo do Nordeste, para trabalhar na construção da cidade. Esses trabalhadores enfrentaram condições duríssimas e, ironicamente, muitos deles nunca tiveram direito de morar na cidade que ajudaram a construir.

Essa é uma parte fundamental — e muitas vezes silenciada — da história de Brasília: a vida dos candangos, os trabalhadores que literalmente construíram a capital com as próprias mãos. Sem entender essa dimensão social, a epopeia da construção de Brasília fica incompleta e romantizada demais.

O termo “candango” passou a designar os milhares de homens e mulheres que migraram de regiões pobres do Brasil, especialmente do Nordeste, para trabalhar nas obras de Brasília. Vieram atraídos por promessas de emprego e uma vida melhor. Eram pedreiros, carpinteiros, serventes, cozinheiras, lavadeiras — pessoas simples, muitas vezes analfabetas, que se deslocaram em paus-de-arara ou caminhões, enfrentando viagens longas e precárias.

Estima-se que mais de 60 mil pessoas tenham participado diretamente da construção da cidade — mas esse número é bem maior se contarmos os familiares e os que ficaram para viver nos arredores.

A realidade que os esperava no Planalto Central era muito diferente da propaganda oficial. Quando chegaram, não havia quase nada: a vegetação do Cerrado dominava a paisagem, e tudo precisava ser improvisado. Os trabalhadores viviam em acampamentos improvisados, feitos de madeira, lonas, zinco, com condições mínimas de higiene, iluminação ou ventilação.

A jornada de trabalho era exaustiva: de 10 a 14 horas por dia, sob o sol escaldante do cerrado. A poeira vermelha invadia olhos, narizes e pulmões. Acidentes eram frequentes e, muitas vezes, fatais — o uso de equipamentos de proteção era raro. A obra avançava em ritmo frenético, impulsionada pela pressão política de Juscelino para inaugurar Brasília até 1960.

Os salários eram baixos e atrasavam com frequência. A alimentação era precária e repetitiva: arroz, feijão, farinha e um pouco de carne, quando havia. Muitos adoeciam e não recebiam qualquer atendimento médico digno.

O Brasil já tinha uma legislação trabalhista desde a Era Vargas (CLT, 1943), mas ela pouco era aplicada aos candangos. Os trabalhadores estavam, em sua maioria, informais. Grande parte foi contratada por empreiteiras ou por “gatos” — intermediários que terceirizavam a mão de obra de forma precária e exploradora.

Não havia garantias como: registro em carteira; férias; décimo terceiro; FGTS (criado só em 1966) e aposentadoria. Muitos terminaram suas vidas sem nunca ter conseguido se aposentar ou sequer provar que trabalharam na construção da capital. Isso criou uma geração de idosos desassistidos e esquecidos pelo próprio Estado que ajudaram a erguer.

O projeto de Brasília foi todo pensado para abrigar uma elite administrativa e política, com espaços amplos, organizados, monumentais. Mas não havia moradias previstas para os operários. Assim que as obras foram finalizadas, os candangos começaram a ser "empurrados" para fora do Plano Piloto — e o governo começou a erguer as chamadas cidades-satélites, inicialmente como assentamentos improvisados.

Taguatinga (1958) foi a primeira. Depois vieram Ceilândia, Sobradinho, Gama, entre outras. Essas regiões — distantes, carentes de infraestrutura e longe do centro do poder — se tornaram a verdadeira casa da maioria da população que fez a cidade nascer.

Apesar de serem protagonistas reais da construção de Brasília, os candangos foram por muito tempo tratados como figurantes na narrativa oficial. Só recentemente começaram a receber algum reconhecimento simbólico — com homenagens, museus, memoriais e relatos orais sendo resgatados por pesquisadores e historiadores.

Mas, em termos concretos, muitos continuam marginalizados, e suas famílias ainda enfrentam os efeitos do abandono histórico: morando longe dos centros, com dificuldades de acesso à saúde, educação e transporte de qualidade.

"Brasília foi feita com muito suor, muito calo e pouca recompensa. Os palácios brilham, mas a poeira ficou com o povo que os levantou."

O “êxodo” para Brasília não foi apenas físico, mas simbólico: milhares deixaram suas raízes em busca de oportunidades e viram na nova capital um futuro promissor. No entanto, a estrutura social da cidade acabou sendo altamente segregada — os candangos ficaram relegados às “cidades-satélites” (hoje, regiões administrativas como Ceilândia, Taguatinga etc.).

Arquitetura e urbanismo

Brasília é um dos poucos exemplos no mundo de uma cidade totalmente planejada antes de ser construída — e talvez o mais emblemático.

O urbanismo foi entregue a Lúcio Costa, que venceu um concurso com o famoso projeto do “Plano Piloto”, em formato de avião ou cruz (há divergências sobre o símbolo). Já a arquitetura ficou a cargo de Oscar Niemeyer, discípulo de Le Corbusier, mas com uma linguagem absolutamente própria: formas curvas, concreto aparente e monumentalidade.

O Plano Piloto

Em 1957, o governo de Juscelino Kubitschek lançou um concurso nacional para definir o projeto urbanístico de Brasília. Lúcio Costa, já uma figura de prestígio e um dos maiores defensores do modernismo no Brasil, inscreveu sua proposta quase como um croqui. Com traços simples e quase espontâneos, apresentou o famoso “desenho em cruz” (que muitos interpretam como um avião), composto por dois eixos principais:

  • Eixo Monumental (horizontal): concentra os prédios administrativos, políticos e culturais da cidade.

  • Eixo Rodoviário (ou Eixo Residencial) (vertical): onde estão localizadas as superquadras residenciais.

Ele escreveu, em anexo ao projeto, um memorial descritivo que foi decisivo para a vitória no concurso. Ali, defendia uma cidade funcional, moderna, racional, inspirada nos princípios do urbanismo de Le Corbusier, mas também brasileira, inserida no cerrado, pensada para o futuro.

Para Lúcio Costa, a cidade não era apenas um conjunto de vias e edifícios: era uma ideia, um manifesto sobre o Brasil moderno. Ele acreditava que a arquitetura e o urbanismo podiam transformar o modo de viver das pessoas. Por isso, estruturou Brasília com:

  • Superquadras residenciais: grandes blocos organizados, com escolas, praças, comércio e áreas verdes integradas.

  • Setorização funcional: áreas específicas para moradia, lazer, trabalho, administração pública.

  • Mobilidade rodoviária fluida: sem semáforos, com vias expressas e viadutos planejados.

Mas seu plano também foi criticado por ser excludente, já que priorizava automóveis e não previa habitação popular no centro urbano.

Oscar Niemeyer

Enquanto Lúcio Costa planejou o tecido da cidade, Oscar Niemeyer foi responsável pelos edifícios públicos, o rosto arquitetônico de Brasília.

Niemeyer era o arquiteto preferido de Juscelino e já tinha trabalhado com Lúcio em projetos anteriores, como o do Ministério da Educação e Saúde no Rio (hoje Palácio Capanema). Em Brasília, Niemeyer teve liberdade criativa para desenvolver um estilo único, que aliou os ideais modernistas à sua própria poética visual.

O que marcou sua arquitetura foi: o uso do concreto armado para criar curvas ousadas e formas fluidas; o diálogo com o espaço aberto, a paisagem e o horizonte de Brasília; uma busca por monumentalidade, leveza e expressão simbólica.

Obras mais emblemáticas em Brasília

  • Palácio da Alvorada (1958): residência oficial do presidente, com colunas finas e longilíneas.

  • Congresso Nacional: duas torres ladeadas por cúpulas invertidas (Senado e Câmara), um dos cartões-postais do Brasil.

  • Palácio do Planalto: sede do Executivo, com o uso de pilotis e espelhos d’água.

  • Supremo Tribunal Federal: linhas retas e colunas imponentes.

  • Catedral Metropolitana: uma obra-prima expressionista com 16 colunas curvas que se abrem para o céu, como mãos em oração.

O casamento entre o urbanismo racional de Lúcio Costa e a arquitetura escultural de Oscar Niemeyer fez de Brasília uma cidade sem paralelos no mundo. Ambos eram modernistas convictos, discípulos de Le Corbusier em certo sentido, mas também profundamente brasileiros, inserindo na paisagem seca do Planalto Central um projeto utópico de nação.

Lúcio deu a ordem. Niemeyer deu a emoção.

Enquanto um pensava o traçado lógico do cotidiano, o outro criava edifícios que expressavam ideais — de democracia, de progresso, de fé. Brasília é um raro caso em que arquitetura e urbanismo se fundem num mesmo gesto nacional.

O legado

  • Para a arquitetura, Brasília é referência mundial do modernismo e obra de arte urbanística.

  • Para a engenharia, foi um desafio logístico inédito e histórico.

  • Para a política, é um símbolo ambivalente: tanto do sonho desenvolvimentista quanto da desconexão do poder com o povo.

E para o povo brasileiro, é uma cidade que ainda busca equilibrar o ideal e a realidade.

No campo jornalístico e político, Brasília foi também um símbolo da promessa de um novo país. A transferência da capital do litoral para o interior era vista como uma forma de reafirmar a soberania sobre o vasto território nacional. Veículos de imprensa, céticos ou esperançosos, acompanharam de perto a epopeia. A construção da cidade foi registrada com estardalhaço na mídia da época, sendo um espetáculo de engenharia, arquitetura e poder.

No entanto, o projeto também foi alvo de críticas: era um “delírio faraônico”, custava caro, criava desigualdades e ignorava problemas urgentes nas capitais tradicionais como Rio de Janeiro e São Paulo. Além disso, para muitos, a mudança da capital serviu também para isolar a elite política da pressão popular e das greves urbanas do sudeste.

Patrimônio da humanidade

Em 1987, Brasília foi tombada como Patrimônio Cultural da Humanidade pela UNESCO — é a única cidade construída no século XX a receber esse título. Seu projeto urbano e arquitetônico é considerado uma obra-prima do modernismo.

Mas a cidade também é marcada por contradições: idealizada como democrática, acabou sendo profundamente desigual; planejada para carros, é hoje um dos maiores símbolos de segregação espacial e dificuldade de mobilidade para pedestres e ciclistas. Ainda assim, Brasília permanece como um monumento vivo ao sonho de modernidade e à capacidade criativa e construtiva do Brasil.