Milton Nascimento, navegações, vozes e saudade

26 de out. de 2025

-

Milton Silva Campos do Nascimento nasceu em 26 de outubro de 1942. Nasceu no Rio de Janeiro e foi criado em Três Pontas, Minas Gerais, por uma família que o acolheu quando era bebê. Ganhou o apelido Bituca ainda pequeno e cresceu em torno de música, na casa da sua mãe adotiva que era professora de canto. Essa infância em Minas marcou tudo o que viria depois. O canto de Milton tem algo daquela geografia, vai fundo, alonga frase, bebe na melancolia das paisagens e na oralidade das reuniões de viola.

A primeira vez que a voz de Milton entrou num registro público foi cedo. Ele gravou “Barulho de Trem” nos anos 60 e passou por palcos de baile e bares antes de se tornar referência. Em Belo Horizonte, estudou e tocou com Wagner Tiso e outros jovens músicos que viraram família musical. Ali nasceu o ambiente que depois seria chamado de Clube da Esquina, um lugar literal e simbólico onde composições nasciam em esquinas, mentoria informal e camaradagem. Essas reuniões e encontros tornaram-se matriz criativa, harmonia aberta, sotaque mineiro na cadência, empréstimos do jazz, da bossa e do rock em doses que não apagam a referência popular.

O salto do anonimato para o grande público veio com “Travessia”. Composta com Fernando Brant, a música e a apresentação no Festival Internacional da Canção de 1967 deram a Milton um lugar na cena nacional. A partir dali, ele deixou de ser voz de baile para ser autor e intérprete procurado por outros artistas e por públicos fora de Minas. Foi o começo de uma carreira que alternava momentos de visibilidade intensa e fases de recuo, de dispersão criativa e de retorno sempre com novas texturas.

A trajetória de Milton na virada dos anos 60 para os 70 precisa ser lida em duas camadas. A primeira é a da música propriamente dita, discos, arranjos, colaborações. A segunda é a do contexto político e cultural do Brasil sob ditadura. Milton compôs algumas letras que precisaram ser silenciadas. O álbum Clube da Esquina, de 1972, feito em parceria com Lô Borges e muitos outros músicos de Minas, é fruto direto daquele esforço coletivo. É um disco duplo, gravado em 1971, que mistura referências que iam da canção popular ao jazz, do rock ao barroco pop, e que se tornou referência porque mostrava um Brasil que não aceitava encolher sua música diante da repressão. Foi também um projeto coletivo, com arranjos e participações que abriram caminho para gerações seguintes.

No mesmo período Milton começou a dialogar com o resto do mundo. Em 1974 Wayne Shorter o convidou para o álbum "Native Dancer", encontro que aproximou o músico mineiro do jazz norte-americano e projetou sua obra num circuito internacional. A parceria com Shorter foi um dos movimentos que mostram como Milton flertou sempre com diferentes linguagens sem perder a consistência de sua voz. Na prática, era possível ouvir nos discos uma ambição de travessia em composições feitas para o diálogo global, sem abdicar da coisa local.

A voz de Milton também virou hino em momentos de política pública. “Coração de Estudante”, que ganhou letra de Milton em parceria com Wagner Tiso, acabou ligado ao movimento Diretas Já e foi tocada no velório de Tancredo Neves. A música ultrapassou a esfera pessoal e virou símbolo de uma esperança coletiva. Isso mostra um ponto central sobre a carreira dele, que muitos de seus sons transitam entre o pessoal e o público, entre a canção íntima e o registro de uma memória coletiva.

No repertório há canções que viraram padrão, e outras que viraram história. “Ponta de Areia”, “Maria Maria”, “Canção da América” e “Travessia” são exemplos que atravessaram gerações. A parceria com Fernando Brant escreveu um capítulo determinante na construção de letras que não cediam ao lugar comum. Aí entra também a capacidade de Milton de trabalhar com arranjadores e instrumentistas que ampliaram o gesto composicional. Wagner Tiso, Toninho Horta, Beto Guedes e outros nomes foram peças fundamentais nessa arquitetura sonora que mistura violas, piano, sopros e cordas com uma economia de espaço muito singular.

A produção de Milton nunca foi linear. Ele passou por períodos de maior experimentalismo, outros de canção pura, e por colaborações transversais. Trabalhou com Wayne Shorter, com Herbie Hancock, com Paul Simon e com nomes do jazz e da música pop internacional. Em meados dos anos 90 e depois, houve discos que consolidaram sua reputação fora do Brasil, ao mesmo tempo em que ele se mantinha presente na vida cultural do país. Recebeu prêmios e reconhecimentos internacionais, incluindo Grammys, o que não o colocou a salvo da crítica ou do desgaste natural de qualquer carreira longa.

Há curiosidades que contam mais do homem do que mil entrevistas. Bituca ganhou o apelido quando criança por uma expressão do rosto. Tinha uma relação com trem, com viagens e memórias do interior que circulam em muitas canções. O nome Clube da Esquina vem da esquina onde jovens músicos se encontravam em Belo Horizonte. A capa do álbum de 1972 mostra dois garotos numa estrada de terra, imagem que virou símbolo daquilo, não havia sofisticação de estúdio que substituísse o encontro espontâneo entre amigos representando a música nascida ali.

Musicalmente, Milton construiu uma gramática própria. Sua fala melódica, a tensão e a maneira de alongar vogais, o uso do silêncio entre frases, tudo isso compõe um timbre reconhecível. Ele trabalhou timbres e texturas, colocou arranjos de cordas em diálogo com violões simples, introduziu linhas de sopro como se fossem continuidade do canto. As harmonias vêm do jazz, mas a métrica e o acento pertencem ao canto popular mineiro. Essa mescla fez com que sua música fosse resistente a modismos.


Os anos recentes trazem outro capítulo. Milton anunciou aposentadoria dos palcos no fim de 2022 e fez uma última grande apresentação no Mineirão em novembro. A partir daí vieram notícias sobre seu estado de saúde. Em 2022 foi divulgado um diagnóstico de Parkinson, e em 2025 a família informou sobre um quadro de demência por corpos de Lewy. Esses fatos colocam urgência em revisitar a obra e em entender como memória e presença do artista se reconfiguram quando o corpo fica frágil. A aposentadoria não apaga a obra, pelo contrário, expõe a obra como documento.

Ao fim, a história de Milton é a história de um homem que fez da voz uma casa. Essa casa tem quartos colonizados por Minas, por viagens, por jazz americano, por canções populares brasileiras e por poesia em parceria com letristas como Fernando Brant e Márcio Borges. É uma obra construída por encontros, encontros musicais, encontros no canto, encontros com um país que nem sempre foi generoso. Milton atravessou tudo isso cantando. Sua música oferece uma forma de escuta onde o indivíduo e a comunidade se cruzam. É por isso que, mesmo com o tempo passando e a saúde pedindo recuo, a obra de Bituca continua sendo referência e encontro.

Assistente de redação

Assistente de redação