O que APESHIT nos diz sobre arte, moda e representatividade

19 de jun. de 2018

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“APESHIT” - primeiro single do disco “Everything is Love" de Beyoncé e Jay Z– poderia ser um grito preso na garganta que agora ecoa. Afinal, é intenso e questionador. Mas, melhor do que isso: é um marco. São pouco mais de seis minutos em que o casal mais poderoso da música pop atual, pode, até mesmo, FECHAR O LOUVRE e constatar que as produções artísticas mais importantes da última década, certamente foram criadas por artistas negros.
https://youtu.be/kbMqWXnpXcA
Em 2017 o Museu do Louvre, em Paris, recebeu mais de 8 milhões de visitantes e no meio de um dos eventos mundiais mais populares, a Copa do Mundo, - contrariando qualquer possível estratégia de comunicação – o casal nos mostra muito mais do que um vídeo bem dirigido, impecável e repleto de analogias. “The Carters” - em seu primeiro clipe - aponta o dedo para a sociedade que “escolhe” o que e quem está nos museus e prova que pode reinterpretar com negros as principais obras de Arte da História, sem precisar ocultar ou esconder nada de ninguém.  Afinal, elas estão ali no seu lugar de sempre, no entanto, ganham suas devidas “atualizações” à lá Beyoncé - que vai à Paris ressignificar sua herança familiar - crioula francesa - e agradecer a seus antepassados.
Ao assistir o clipe pela primeira vez, foi inquestionável pensar na arcaica estrutura que a produção cultural segue na maioria dos casos. Ou seja: recorta o que quer e mostra o que é interessante para si. Mesmo que isso exclua boa parte da História e ancestralidade dos mais variados povos. Em “APESHIT”, o questionamento é claro: Onde estão os personagens negros na Arte? Sempre foram retratados como escravos? Por mais recorrente e atual que seja essa pergunta em todo o clipe a única representação aparente de uma mulher negra é no quadro “Retrato de uma negra”, de Marie-Guillemine Benoist, de 1800. Ou seja, desde 1800 essas pessoas não são representadas? É preciso que Beyoncé aponte isso num clipe para pensarmos? E as obras de artistas negros? Onde estão? Será que só têm espaço em exposições cuja temática seja o povo negro? Infelizmente, é possível contar nos dedos os nomes que estão expostos naquele que é o maior museu do mundo.
Abaixo elencamos em ordem os momentos que algumas das principais representações artísticas são reinterpretadas pelo casal:
1 – SAGRAÇÃO DE NAPOLEÃO

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No século 18, a primeira exposição do Louvre, pós-Revolução Francesa foi feita com mais de 500 obras da realeza francesa e outras confiscadas. Essa coleção foi aumentada sob o governo de Napoleão e foi renomeado como "Museu Napoleão". Só após a abdicação, muitas das obras apreendidas pelos exércitos napoleônicos foram devolvidas aos seus proprietários originais.
No clipe, parece que dançar a frente ao quadro já diz tudo sobre um povo que teve suas obras e História saqueadas e só agora conseguem reavê-las, não é mesmo? E o que dizer também sobre esta mesma pintura que traz, Joséphine de Beauharnais, esposa de Napoleão, recebendo sua coroa das mãos de seu marido? A pintura de 1807 do artista francês Jacques-Louis David retrata o momento da coroação de Napoleão I como imperador, mas uma das figuras centrais do quadro é sua imperatriz. Bem parecido com o que acontece no clipe, não é mesmo? Onde – importe-se você ou não – ninguém quer saber de Jay Z quando se tem Beyoncé.
2 – A VITÓRIA DE SAMOTRÁCEA

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Beyoncé performa enraivecida “um apeshit” – em tradução livre: um ato de insanidade e reação intensa sobre algo – abaixo da escultura "A vitória de Samotrácea" – obra de artista desconhecido que retrata a deusa grega Nice representada por uma mulher alada que personifica a vitória, força e velocidade.
Mais uma escolha de deixar a gente no chão.
Um fato interessante é o de que a peça grega foi encontrada por um arqueologista e estava destruída em mais de 118 pedaços e remontada no próprio Museu do Louvre, quando por lá aportou em 1864. No entanto, um dos mistérios que rodeiam Samotrácea nunca foi solucionado: sua cabeça parece ter se perdido para sempre.
“Estudos apontam”(rs) que não são apenas os fragmentos da história da escultura que estão sendo retomados, mas também, muito do que História dos povos marginalizados também e que hoje estão, por fim, conquistando seu espaço.
3 – GRANDE ESFINGE DE TANIS

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Em alguns takes, o casal surge com a esfinge ao fundo e Beyoncé está com lenço de seda envoltório aos cabelos e vestido com a icônica estampa "Barocco" da marca italiana Versace que tem como característica o luxo, ouro e excessos.

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“Curioso aqui” é o fato de uma das áreas mais famosas do Louvre é africana - o departamento egípcio - cujas obras são testemunhos da história do Império. No entanto, pouquíssimas obras contemporâneas no acervo são de artistas africanos ou sobre ancestralidade de outras áreas da África.
4 – A JANGADA DE MEDUSA

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        Após cena em que homens negros estão abaixados na área externa do museu, Jay Z aparece com o quadro “A Jangada de Medusa” ao fundo, essa obra de Théodore Géricault representa os sobreviventes (e os mortos) do naufrágio da Medusa que pedem ajuda ao ver à distância a silhueta de outro navio que poderia salvá-los. Em 1816, o fragata havia partido da França, e navegava em direção a Senegal, na África, com intenções de colonização do País. Relatos da época afirmam que Géricault teria tido a inspiração para o quadro a partir de uma notícia sobre o naufrágio. A pintura representa o momento logo após a embarcação começar a afundar, em que a tripulação e os passageiros não conseguiram se salvar com os botes de emergência e todos lutam à deriva.
Alguma similaridade histórica por aqui? Risos
5- MONALISA

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Após imagens de amarras, uma das bailarinas dança livremente ante à Monalisa. Como nunca antes, no museu vazio a performer assume seu espaço e com autonomia cria o que quiser diante da figura “enigmática” de Da Vinci. Há também a cena em que um outro casal penteia os cabelos dando às costas para o quadro. Essa imagem também foi utilizada para compor a capa do álbum. Nela, é como se eles olhassem pras si, pras suas raízes e se identificassem mais com isso do que tudo o que está a sua volta. Toda aquela arte que lhes foi imposta pela sociedade e nunca os representou.
6 – VENUS DE MILO

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       Diante da escultura de “Venus de Milo” – uma das deusas mais importantes e veneradas da Antiguidade Clássica - e que simboliza o ideal de beleza facial e corporal da época - Beyoncé só assume o seu lugar: uma Vênus contemporânea com um look nude que a esculpe e como as gregas, não precisa de ornamentos.
7 – OS LOOKS
O sétimo ponto é sobre moda e como ela foi utilizada de forma artística para mostrar a força da mulher atual:

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Nas principais cenas frente à Monalisa, Beyoncé veste uma releitura de um terno – vestimenta quase sempre usada por homens  - e Jay Z também. Mas, seu look vem numa ótima escolha de matiz: o rosa que sempre foi ligada à fragilidade e feminilidade. Ela também utiliza uma combinação de joias similares as usadas por Marilyn Monroe na canção “Diamonds are a girl’s best friend”, no filme “Os homens preferem as loiras”. Aqui ela emparelha um combo de símbolos historicamente femininos para mostrar que ela é a real “boss” – como na canção – e para isso, ela também pode ressignificar o que quiser, inclusive ícones masculinizados pela sociedade. Vale lembrar também que nos anos 60, quando Yves Saint Laurent lançou o smoking feminino – no auge do movimento feminista – houve furor e polêmica na sociedade. No entanto, o que o diferenciava na criação de Coco Chanel, nos anos 20, era apenas uma lapela.
Á frente de Napoleão, Beyoncé está inteiramente vestida do mais característico xadrez da marca inglesa Burbery enquanto suas bailarinas vestem apenas lycras. Nesse trecho, a “afronta’ da vez é utilizar algo inglês e ainda cantar “eu visto roupas caras”. E pode ser que vocês se lembrem disso da época de escola, inclusive... Lembram do Bloqueio Continental? Com ele, Napoleão tinha o objetivo "quebrar" a resistência da Inglaterra – como potência mundial - sufocá-la economicamente. Ou seja, ele proibiu que outros países europeus comercializassem com os ingleses em 1806. E no clipe, “a realeza” veste uma produção saxônica.
Abaixo de Nice de Samotrácea, Beyoncé usa  dois looks que são extremos, assim como a performance. Na primeira, ela veste um vestido com tom angelical leve e etéreo. Já na outra, ainda vestida de branco, ela parece desgrenhada com cabelos frisados ​​e uma saia volumosa e totalmente estruturada de forma que nos remete à como as vestimentas são esculpidas em mármore a alta-costura é de Stephane Rolland e a capa de Alexis Mabille.

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Por meio de sua aparência, Beyoncé mostra que as mulheres são complexas e transformadoras seja nas Artes ou pela forma como se vestem. Tudo pode ser contestador, especialmente quando não está confinado a um cavalete de arte e sim, na rua.
Obs.: o clipe também contou com peças de Peter Pilotto, Dries Van Noten, Balmain, John Galliano, MCM, Y Project e Alexander McQueen.