A América Latina pelo traço de Luiz Escañuela
Nascido em São Caetano do Sul, Luiz treina seu olhar com desenhos de observação desde sua infância - através de técnicas e dinâmicas artísticas. Com seus estudos nas artes visuais e contemporâneas, trabalha a textura da pele como parte da sua assinatura pessoal; explorando as nuances do corpo humano para criar representações que convergem com símbolos visuais brasileiros.
Conversamos um pouco com Luiz sobre seu processo criativo e, sobretudo, a técnica por trás de suas obras. Confira abaixo:
Sabemos que você treina seus desenhos desde os 6 anos de idade. Isso foi algo sempre incentivado pela sua família?
R: Foi sim. No início, não era um “treino”, eu só gostava de “brincar de desenhar” junto com a minha irmã e amigos. Na época, fiz alguns desenhos e vendi por 10 centavos para comprar bala no recreio, aliás. Mas meus pais, sempre que podiam, compravam algum material novo, lápis de cor, papéis, tintas. Por isso, nunca deixei de me familiarizar e me divertir com o desenho.
Com 15 anos, descobri um curso técnico de design gráfico. Uma amiga que fazia o curso ia até minha casa com desenhos feitos em inúmeras técnicas: grafite, lápis de cor, guache, nanquim. Foi quando entendi que o desenho poderia ser levado para uma profissão mais “palpável”. Desde então, mergulhei de forma mais aplicada nas técnicas, tanto como designer gráfico quanto, posteriormente, como artista visual.
Quais artistas ou movimentos influenciam o seu trabalho na construção de suas narrativas?
R: Essa resposta costuma mudar dependendo da fase da minha pintura e do que quero que venha junto dela. Às vezes respondo citando artistas que possuem trabalhos completamente diferentes dos meus, mas que, de alguma maneira, me inspiram pela forma como enxergam o mundo e a sua arte.
Ultimamente, estou interessado no estudo de artistas que compartilham uma abordagem orientada pelo corpo humano e suas possibilidades pictóricas. Então, eu responderia Francis Bacon, Lucian Freud e Jenny Saville. Nos três, a materialidade da pintura se torna um meio essencial para transmitir a intensidade psicológica e emocional do corpo. Ele é dissecado, virado do avesso, trabalhado como uma massa, transformado em paisagem, em sentimento, em coisa. Me interessa muito o procedimento de concepção de um corpo que é palpável e intangível ao mesmo tempo.
Também tenho passado bastante tempo observando o trabalho de Luis Caballero Holguín, um artista colombiano da segunda metade do século XX, principalmente seus desenhos. Ele traz movimentos gráficos à anatomia, principalmente ao trabalhar com mais de um corpo, selecionando áreas de interesse e fundindo as figuras de uma maneira que tem me instigado bastante.
De que forma sua experiência pessoal e a percepção da América do Sul influenciam a escolha temática do seu trabalho?
R: Já houve momentos em que eu acreditava que a literalidade dos elementos inseridos na pintura me levaria a alguma “fidelidade de origem”. Mas, conforme amadureci meu trabalho, passei a sentir que essa identidade sulista ou latina estaria acoplada à minha pintura de uma maneira ou de outra. Sinto que as analogias que faço com a materialidade do corpo me “aterram” aqui, me puxam para cá de uma maneira intrínseca ao meu modo de pintar e de ver o corpo. Então, não é um procedimento intencional. Minha perspectiva sobre o Sul integra meu trabalho por outras camadas, acredito que, hoje, menos literais e mais instintivas do que quando comecei a pintar.
Como é seu processo criativo antes de iniciar alguma série?
R: Meu trabalho tem uma forte conexão com a fotografia, então passo muitas horas do meu processo criativo fazendo decupagem de imagens: selecionando, cortando, invertendo. Muitas dessas fotografias são a base para esboços em carvão, em que começo a fazer experiências com traços e formas. A fotografia, o cinema e até a literatura me dão insights sobre o corpo e suas possibilidades. Mas tento não me limitar à fotografia de corpo, então também passo muito tempo coletando imagens históricas no Brasiliana Iconográfica ou tirando prints de documentários sobre natureza e paisagem.
Depois dos esboços, faço alguns testes de cor e começo a abrir a paleta conforme a pintura vai tomando forma. Antes, eu pintava com a tela dividida por grids, o que me dava um domínio absurdo do detalhamento. Hoje, não uso mais o grid porque, de alguma maneira, memorizei o comportamento dos fluxos da pele e desses detalhes mais finos. Isso traz espontaneidade e liberdade para essa nova abordagem da anatomia que tem surgido no meu trabalho.
Ultimamente, tenho experimentado novos materiais que potencializam a pintura e trazem mais texturas. Tenho usado pontas-secas, goivas e lixas para “raspar” e golpear a tela. Não me interesso mais em simplesmente cobrir tudo de tinta como uma película cinematográfica. Ao pintar o corpo, sinto que a pintura precisa de mais matéria para pulsar como um ser vivo e chegar ao espectador de maneira menos literal.
Você acredita que a arte pode ser uma forma de resistência?
R: A resposta mais curta e mais óbvia para essa pergunta seria: “Sim, só o fato de se fazer arte já é um tipo de resistência”, mas vou usar este espaço para tentar ir um pouco além.
A arte pode ser resistência, mas é importante estarmos atentos a algumas variáveis. Contra o que se quer resistir? Que tipo de resistência será essa?
Quem se propõe a tratar de temáticas profundas a respeito do tecido social precisa ter responsabilidade. Artistas não se excluem disso. Depois que a ascensão do neofascismo ficou clara, surgiu uma onda de “seremos resistência”, e eu sempre fiquei meio desconfiado com o sentido de uma arte que quer (muito) “resistir”.
O problema é quando a “arte de resistência” vira um tipo de moeda de troca, um discurso utilitário e nada preocupado com o conteúdo ou caráter textual dessa resistência, sendo pensada apenas visando o ganho institucional ou a grana que poderá ser feita vendendo “trabalhos de resistência” para uma classe média progressista que deixou de colecionar Funko e decoração no shopping e passou a investir em arte. Daí a crítica perde força e criamos cenários onde pouco importa se aquela resistência realmente resiste a algo ou se há algum embrião de disrupção naquele trabalho ou discurso.
Então é importante ficar ligado se ALGUMAS “artes de resistência” já não foram cooptadas, aliciadas e domesticadas pelo próprio ente contra o qual inicialmente almejavam resistir. Pode ser espinhoso, mas, se não falarmos disso, a importância dessas temáticas pode ser neutralizada, porque já sabemos que o capital tem maneiras sistematizadas de fagocitar a urgência de pautas importantes para a dignidade e o futuro da humanidade. E isso NÃO É diferente nas artes.
Existem artistas que sabem disso. Eles já adquiriram certa malícia para ironizar e escancarar algumas contradições dessa “resistência” e sabem surfar em certos hypes para depois dar voz ao que poucos têm coragem de dizer. Isso me inspira e me deixa esperançoso.
Para mim, uma das maneiras de resistir como artista é permanecer fiel ao que se possui de mais íntimo: suas preocupações mais extremas, seus maiores encantamentos ou desesperos. É ter o ouvido atento ao que o mundo possa estar pedindo (obrigando) você a fazer e responder: “não, não sou obrigado a abordar isso”. O artista resiste quando faz o que ele, e apenas ele, pode fazer; você sente uma verdade silenciosa que se recusa a dobrar o joelho. Geralmente, isso não soa repetitivo, não parece um pastiche ou uma receita.
Resistência pasteurizada, domesticada, não é resistência nenhuma. É uma estética decorativa que alivia culpas que não deveriam ser aliviadas.
Como você enxerga a interação entre a materialidade do corpo e as feridas históricas do continente sul-americano em sua obra?
R: A resposta vai na mesma linha da resposta dada acima sobre minha experiência pessoal e percepção da América do Sul: minha construção enquanto sujeito-cidadão-artista nesse continente me deixou curioso e sensível a determinados assuntos e pesquisas. Aos poucos isso me levou aos caminhos do corpo e, de alguma maneira, às suas feridas e dores. Nunca vou esquecer a primeira vez que li o título “As Veias Abertas da América Latina”, do Eduardo Galeano. Por mais que hoje já seja quase um clichê, lembro do desconforto e encantamento por essa associação entre corpo e geografia. Aquilo criou inúmeras imagens que nunca saíram da minha cabeça.
Conforme fui entendendo uma maneira de pintar o corpo associado à paisagem, afastado de sua literalidade funcional, essas dores foram aparecendo, às vezes como feridas literais, outras vezes como uma forma mais agressiva de pintar a pele, com mais contrastes e peso nas texturas.
Como você enxerga a dualidade entre a beleza e a violência presentes na América do Sul, e de que forma essa dualidade se reflete em sua arte?
R: É difícil responder isso sem citar Gabriel García Márquez e o realismo fantástico. Leio sua obra desde a adolescência, então não consigo pensar nessa dualidade sem lembrar de uma abordagem tão mágica quanto crua da realidade. Imagino que tratar do corpo com sua beleza, apetites, dores e temores tem a ver com essa noção de um mundo onde fenômenos extraordinários e momentos de assombro aparecem lado a lado com a brutalidade, como se ambos fossem igualmente naturais, mesmo sabendo quando não são. Sinto que certa “beleza fantástica” não dilui o sofrimento, pelo contrário, o intensifica, tornando a complexidade da região ainda mais palpável.
Para você, qual seria o papel da arte na conscientização sobre questões ambientais? Você vê a arte como um catalisador para a mudança?
R: O papel exato eu não sei. O que sei é que a arte aproxima as pessoas; ela tem esse poder de fazer o convite para que a gente se aproxime de temas complexos. A problemática do clima está intrinsecamente ligada às estruturas econômicas que regem o mundo contemporâneo. Quanto mais a arte evidencia as contradições dessas estruturas, mais ela pode se colocar como aliada de um projeto de futuro.
De que forma o seu trabalho busca romper com a visão antropocêntrica e egoísta da arte, ao equilibrar a representação humana com uma crítica às ações humanas no contexto da devastação ambiental?
R: Existem muitas abordagens artísticas para o corpo. Uma das manobras que tento fazer é aproximar, através da pintura, a matéria do corpo ao que está externo a ele: terra, desertos, veios, artérias fluviais. Nesse sentido, acho que existe uma espécie de “dedo na ferida” ao fazer a transposição da matéria que nos faz experimentar o mundo (nosso corpo) sendo colocado no lugar do que pode ser chamado de “meio ambiente”, experimentando suas dores, seus ferimentos, suas agonias. É um exercício mental. E nem sempre precisa ser no sentido da dor e do sofrimento; às vezes, o corpo na minha pintura é concebido para ser híbrido, confundido com lama e água num sentido mais etéreo e sinestésico, pensando em um tempo profundo e na simbiose do corpo com o mundo.
Em um contexto de constante transformação social e ambiental, como você vê a importância de preservar memórias de ancestralidade e geografia ao conectar o corpo com a história?
R: No sentido social, gosto muito de pensar que olhar para o corpo é também olhar para a História. Sempre imagino que os anseios, necessidades, desconfortos, sons, texturas, etc., do meu corpo são/foram compartilhados em maior ou menor grau com o corpo de outros, estejam vivos ou não. Nessa linha de pensamento, dá para fazer alguns exercícios de aproximação com qualquer figura ou tempo histórico. Não sei se é uma brisa minha, mas isso me deixa mais interessado por esse sentido de comunhão que podemos ter, mesmo que não seja literal. Me irrita essa eterna necessidade de “rede de conexão”, conexões extremamente literais, observadas, computadas, exaltadas, vendidas, etc. Acabamos não observando algumas conexões que são muito mais veladas, que abarcam a experiência do nosso corpo num sentido tanto cultural quanto fisiológico. Acho que a arte pode se enfiar no labirinto dos corpos anatômicos, geográficos e históricos e aprofundar essas perguntas de uma maneira extremamente potente.
O corpo não está “inserido” na História como um coadjuvante da mente; eles a moldam conjuntamente. São indissociáveis.
Em relação ao futuro — há planos ou projetos que você gostaria de desenvolver e já tem em mente?
R: A curto prazo, eu gostaria de fazer alguma residência fora do Brasil, imergir em outro lugar, entender como a arte funciona em diferentes contextos. No longo prazo, eu gostaria muito de ter um ateliê maior, um espaço mais comunitário para experimentações técnicas e troca ativa de ideias. Vamos ver. :)